Os 26 juízes brasilienses que participam do curso de Iniciação Funcional de Magistrados foram confrontados com a visão que a sociedade tem acercadas atividades do Judiciário. A provocação ficou a cargo da cientista social Maria Tereza Sadek, professora de Sociologia da Universidade de São Paulo, que há anos dedica-se à pesquisa sobre as relações entre […]
Os 26 juízes brasilienses que participam do curso de Iniciação Funcional de Magistrados foram confrontados com a visão que a sociedade tem acercadas atividades do Judiciário. A provocação ficou a cargo da cientista social Maria Tereza Sadek, professora de Sociologia da Universidade de São Paulo, que há anos dedica-se à pesquisa sobre as relações entre a Justiça e os cidadãos. O curso é uma promoção da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo (Enfam) e prossegue até o próximo dia 22/3.
A socióloga iniciou a palestra relatando opiniões que refletem o senso comum social acerca da magistratura: uso excessivo de uma linguagem hermética, grupo homogêneo e corporativista, profissionais alheios às mazelas cotidianas e apegados ao que se costuma chamar de “a letra fria da lei”. Para a professora, entretanto, tais visões constituem “mitos” e estão mudando progressivamente, sobretudo em função dos desafios que são impostos aos magistrados e às instituições na contemporaneidade.
De acordo com Sadek, o Judiciário tem um papel político extremamente relevante em sistemas presidencialistas como no Brasil. Isso porque, não raro, cabe à Justiça atuar de forma contramajoritária, “contrariando o que foi decido pelos representantes eleitos pelo povo”. Segundo a professora, nos sistemas parlamentaristas europeus, o Judiciário tem um papel mais focado no serviço público. “Na Europa, as discussões de políticas públicas e de sua constitucionalidade é prerrogativa do parlamento”, explicou.
Participação política
Além disso, a socióloga chama atenção para o aumento da participação política do Judiciário em função da Constituição Federal de 1988 e da reforma instituída pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. “Essas mudanças deram um protagonismo à Justiça que impacta diretamente a execução das políticas públicas no país. As questões que chegam aos magistrados são retiradas da agenda política”, afirmou.
O somatório desses fatores, na visão de Sadek, desafia o juiz contemporâneo, tanto na sua exposição pública, “que tem de ser diferente”, como também na sintonia com os anseios sociais na hora de fazer seus julgamentos. A socióloga chamou a atenção para a dificuldade do magistrado atual no equacionamento do respeito aos clamores populares sem fugir do rigor técnico-teórico. “Não se pode cair na tentação populista nem direcionar um julgamento segundo a agenda midiática.”
Além da maior inserção política, a professora da USP aponta a crescente cultura da litigância como outro dos desafios ao magistrado neste século XXI. Sadek apresentou levantamentos que demonstram que o número de novas ações ingressando no Judiciário quintuplicou nos últimos 20 anos: era de 5,1 milhão em 1990 e passou para 26 milhões em 2011.
Também destacou que, em 2011, 90 milhões de processos tramitavam no sistema judicial brasileiro – com uma taxa de congestionamento de 71,2%. “Essa questão da morosidade vai para a conta do magistrado, que tem sua credibilidade afetada”, explicou Sadek. A professora, entretanto, lembrou que os órgãos do Governo Federal, seguido dos bancos e das empresas de telefonia são os grandes responsáveis pelo crescimento exponencial da litigância no país.
Estado litigante
“A Justiça acaba se dedicando menos a garantir os direitos dos cidadãos, porque na maior parte do tempo trabalha para resolver questões do Estado”, explicou. Sadek lembrou que a litigância não é um traço cultural brasileiro, tanto que, de acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), em 2010, 63% daqueles que disseram ter problemas de ordem legal acabam não recorrendo à Justiça. “Esse excesso de trabalho a que é submetido o juiz brasileiro é basicamente de cunho administrativo”, disse.
Por fim, a socióloga apresentou alguns indicadores sociais que ressaltam aspectos desoladores da nossa sociedade: violência maior que em países em estado de guerra, concentração de renda entre as piores do planeta e índice de desenvolvimento humano abaixo que o da maior parte da América Latina.
“Essa é uma realidade que tem de ser conhecida pelos senhores e que tem de ser levada em conta em suas reflexões”. A professora ainda elogiou o trabalho da Enfam de oferecer aos jovens magistrados um conhecimento mais preciso acerca das mudanças sofridas pelo sistema judicial e a natureza do trabalho do magistrado nas últimas décadas. “As faculdades de Direito ainda não levam em conta essas transformações.”