“Neste momento, a permanência por longos períodos no lar, que deveria oferecer refúgio e proteção, acaba potencializando o perigo que as mulheres enfrentam com sua convivência familiar com seus agressores.” A fala é da ministra Laurita Vaz, primeira mulher a presidir o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 2016 a 2018, e foi proferida na […]
“Neste momento, a permanência por longos períodos no lar, que deveria oferecer refúgio e proteção, acaba potencializando o perigo que as mulheres enfrentam com sua convivência familiar com seus agressores.” A fala é da ministra Laurita Vaz, primeira mulher a presidir o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 2016 a 2018, e foi proferida na abertura do primeiro módulo do webinário A Mulher e o Judiciário: Violência Doméstica. Ao destacar a importância do evento para a construção de uma sociedade mais justa, a ministra relatou que “o Poder Judiciário quando chamado a intervir se depara com uma situação de violência escalonada. Começa com ameaças; agressões verbais; passando por vias de fato, como lesões corporais; até alcançar crimes mais graves”. Para ela, “se o magistrado não toma em tempo medidas enérgicas, o resultado é bastante previsível e está estampado nos números estarrecedores de agressões e feminicídios que o Brasil vergonhosamente ostenta”.
O evento, coordenado pelo ministro Herman Benjamin, diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), e dividido em três módulos, reuniu ministros, desembargadores, juízes, professores e operadores do Direito, especialistas em Direito Penal e Direito Público, para debater um dos temas mais aflitivos neste período da pandemia Covid-19. Os presidentes da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil, e da Associação de Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes, também estiveram presentes.
Na mesma tempestade
O primeiro módulo do webinário, com mediação da ministra Laurita Vaz, contou com a participação da conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Ivana Farina e teve como expositoras as ministras Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), e Maria Cristina Peduzzi, do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Para a ministra Carmem Lúcia, “toda vez que prevalece o preconceito, prevalece a violência, e toda forma de violência é uma demonstração dos preconceitos que continuam perpassando a sociedade e as relações na sociedade”.
Segundo ela, é importante olhar para a questão levando em consideração o tratamento dado à mulher pela sociedade, pelo Direito e, no caso específico, pelo Poder Judiciário, quer seja em sua estrutura ou na dinâmica jurisprudencial. A ministra tratou ainda do princípio de igualdade e da situação brasileira de um violência que, mesmo denunciada o tempo todo, ainda assim, é muito subnotificada.
Com relação à pandemia, Carmem Lúcia destacou que não é possível igualar as formas de preconceito quando se está em uma sociedade tão desigual. “Essa pandemia escancara que, ao contrário do que muitos dizem, não estamos no mesmo barco. Estamos no mesmo temporal, mas alguns continuam no iate, alguns continuam no barquinho e alguns estão num mar turbulento sem saber onde vai dar essa viagem”. A ministra destacou que são situações muito diversas, onde aqueles que têm mais vulnerabilidade, como as mulheres e, principalmente, aquelas que estão em casa com os seus algozes, estão em situação muito pior do que outras.
Relações de trabalho e a pandemia
A ministra Maria Cristina Peduzzi falou sobre mulher, trabalho e violência doméstica. Ela ressaltou que quase não há aplicação da Lei Maria da Penha do Direito Trabalhista, a não ser em um único dispositivo que a referencia: aquele que assegura à mulher em situação de violência doméstica familiar, em nome da preservação de sua integridade física e psicológica, a manutenção de seu emprego e o direito de ser afastada por seis meses das atividades. Peduzzi destacou ainda que, no âmbito da violência contra a mulher, há vários julgados no TST sobre assédio moral e sexual.
A ministra falou sobre os efeitos da pandemia nas relações de trabalho. Ela afirmou que se tem analisado, no âmbito doméstico, a relação com as empregadas domésticas. “É uma agressão que também ocorre contra essa categoria de trabalhadores”, afirmou, ressaltando o aumento de denúncias de assédio sexual.
Peduzzi ainda discorreu sobre a disparidade de gênero no isolamento social quanto à distribuição de funções domésticas. Ela externou sua preocupação com a situação pós-pandemia, em um possível retorno ao trabalho presencial antes da abertura de creches e escolas. “Também nesse contexto, as mulheres têm tido mais dificuldades do que os homens para manter esta situação de equilíbrio entre o seu trabalho profissional e atividades de natureza doméstica.” O primeiro módulo contou ainda com a participação da professora e pesquisadora Mary Del Priore, que abordou o tema “História da mulher: violência e resiliência”.
Patriarcado
No segundo encontro, a presidente da mesa foi a conselheira do CNJ Candice Lavocat Falcão Jobim, que mediou exposições do ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ; da neurocientista e psicóloga Regina Lúcia Nogueira; da delegada Eugênia Villa; e da defensora pública Rita Lima.
Schietti falou sobre a legislação para o enfrentamento da violência doméstica, destacando que o Brasil é um dos países mais bem amparados normativamente para a situação. “Talvez o nosso problema ainda esteja na questão estrutural e mais ainda na questão funcional”, afirmou o ministro. “Embora tenhamos uma magistratura de excelente nível, ainda precisamos avançar em um aperfeiçoamento funcional para que todos nós, magistrados que atuamos sobretudo no âmbito criminal, tenhamos a capacidade e a aptidão para julgar pela perspectiva de gênero”, disse.
O ministro afirmou que “há uma dificuldade histórica, quase genética, que é a construção de uma megaestrutura de pensamentos, tradições, culturas e crenças que nós chamamos de patriarcado” e pontuou a hegemonia masculina em quase todas as áreas sociais, seja na família, nas religiões ou no trabalho. Para ele, muitas das ações, mesmo que de maneira inconsciente, são influenciadas pela cultura milenar. Schietti fez um apanhado da legislação histórica e citou casos marcantes, como o de Doca Street.
Perspectiva de gênero
Em seguida, a professora Regina Nogueira fez uma apresentação detalhada acerca do impacto da violência doméstica sobre o cérebro e seu agravamento em tempos de pandemia. Já a delegada e professora Eugênia Villa falou sobre a investigação policial e a perspectiva de gênero, enfocando principalmente o feminicídio. Segundo ela, o tipo penal traz duas perspectivas: a de violência doméstica familiar e a de violência de gênero. “Uma mulher que é assassinada vai ter sempre a rubrica do menosprezo e da discriminação”, afirmou.
Encerrando a mesa, Rita Lima analisou a perspectiva de gênero e sua origem, destacando uma consequente estruturação de relações sociais e de poder nessas relações. A defensora pública afirmou que enquanto se fala de gênero como estruturante da sociedade brasileira, não é possível deixar de perceber a articulação com outros fatores, como raça e classe, que geram diferentes opressões e vulnerabilidades às mulheres que procuram a Justiça. Lima também tratou da perspectiva de gênero na atuação em crimes de natureza sexual.
Avanços e realidade
Presidente da mesa no terceiro módulo do webinário, a ministra Regina Helena Costa mediou as palestras de Assusete Magalhães, também ministra do STJ; Maria Cristiana Simões Amorim Ziouva, conselheira do CNJ, e Jacqueline Machado, juíza do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) e presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica (Fonavid).
A ministra falou sobre a repercussão da violência doméstica no Direito Público e fez um apanhado histórico das conquistas relativas aos direitos das mulheres. “Apesar de todos os avanços legislativos, a realidade demonstra que mudaram apenas as leis, não mudou a vida”. A ministra enfatizou que, segundo dados do CNJ, o Judiciário brasileiro terminou o ano de 2019 com um aumento de cerca de 10% das ações de violência doméstica, de quase 5% dos casos de feminicídio e de 20% quanto a medidas protetivas.
Magalhães, que trouxe várias jurisprudências atinentes ao gênero, fez questão de destacar que a violência contra a mulher é uma realidade que não se restringe ao Brasil, mas ocorre em todo o mundo. Para ela, em um momento de confinamento, com quase quatro bilhões de pessoas isoladas em suas casas, a proteção doméstica gera um perigo mortal. “É a chamada pandemia das sombras”, afirmou.
Uma pandemia dentro de outra pandemia
A conselheira Maria Cristina falou sobre o aumento dos casos de violência doméstica no período de isolamento, sem deixar de considerar a subnotificação nos episódios contra mulheres e meninas. Segundo ela, a orientação de isolamento pelos órgãos sanitários, ratificados por normas dos governos estaduais, pode ser a causa da subnotificação. “A vulnerabilidade da mulher nesse período está muito acentuada, não há dúvidas”, disse ao compartilhar possíveis métodos alternativos de denunciação.
Encerrando o webinário, a juíza Jacqueline Machado relatou a dificuldade estrutural e a importância da empatia para que as vítimas de violência doméstica possam alcançar a Justiça. “Temos uma pandemia de violência doméstica dentro de outra pandemia.”